Sentimos muita saudade de você, Mayara Amaral
(Thaís Nascimento)
Por Thaís Nascimento (especialmente para o Acervo)
Escrever esse texto em uma tarde fria e chuvosa de Porto Alegre me fez lembrar julho de 2017, dos dias calmos e ternos de um breve recesso na Serra Gaúcha, onde eu estudava violão, junto a pessoas queridas. Naquele mês, alguns fatos me deixaram a sensação que ter quem amamos perto de nós é um privilégio, quando deveria ser um direito.
Há dois anos perdemos uma mulher, violonista, pesquisadora, compositora, professora, irmã, filha, amiga, colega: Mayara Amaral. Eu não a conheci pessoalmente e talvez nunca soubesse de sua existência se não tivesse mexido em um violão, na casa da minha avó, em Gravataí. E, se mais tarde, eu não tivesse tido acesso aos projetos sociais de música do Sesi e do Projeto Prelúdio do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, que me permitiram estudar música gratuitamente e me preparar para os cursos de licenciatura e bacharelado em música da UFRGS.
Na universidade, estudei um vasto repertório para violão solo e outras formações. Conheci Bach, Villa-Lobos e Sor. Mas os meus preferidos - com quem eu mais me identificava e tocava em recitais - eram Dilermando Reis, João Pernambuco e Américo Jacomino. Em 2016, eu toquei obras de uma estudante de composição, Fabianna Menezes, e conheci Elodie Bouny, no Festival de Violão da UFRGS, organizado pelo professor Daniel Wolff, meu orientador no bacharelado. Vê-la tocar me deixou ainda mais apaixonada por sua música e pelo violão latino. Gosto do violão europeu, do barroco, mas o violão sul-americano, brasileiro, ocupa um espaço maior em meu coração.
(Mayara Amaral)
Levei anos até descobrir Mayara Amaral, uma pioneira que nos ensinou muito. E isso aconteceu quando Elodie compartilhou em redes sociais a notícia de sua morte. Ela foi uma vítima do feminicídio, como a maioria das mulheres assassinadas.
De cara, a notícia me impactou. Mas à medida em que fui conhecendo o seu trabalho transformador sobre o repertório de compositoras para violão, a violência contra Mayara foi corroendo minha alma. E senti raiva, angústia, tristeza. E me deparei com algo que nunca fui: uma pessoa amargurada. Eu já era professora e repensei toda minha vida, meu dia a dia, minhas relações, até chegar ao repertório do violão e de música como um todo nas salas de aula.
A raiva e a tristeza que senti se transformaram em luta e amor pelas causas sociais, pelo respeito à vida e em especial pelas mulheres, que sofrem dificuldades específicas por serem mulheres.
Mayara nos deixou ensinamentos que precisam continuar provocando reflexões. Sua dissertação, A Mulher Compositora e o violão na década de 70: vertentes analíticas e contextualização histórico-estilística tornou-se meu principal texto de cabeceira, de viagem, que levo em eventos e mostro para todas as pessoas. A pesquisa de Mayara tem dados muito ricos sobre a produção das mulheres e eu só olhei para o repertório de compositoras para o violão quando conheci o trabalho dela.
Quantas mulheres são conhecidas e estudadas nos cursos de violão ou cobradas nos concursos? Essa questão me fez querer descobrir cada vez mais compositoras, suas peças, partituras e histórias. Quero provocar reflexões e expandir esse repertório nas universidades, nas escolas de educação básica, em todos os espaços possíveis. Esse é o meu projeto de vida.
Hoje, 29 julho de 2019, choro de felicidade por tantos recitais, gravação de disco, apresentação de pesquisa, espaço na mídia, nas universidades, nas escolas, masterclasses, concursos...
Choro também de tristeza por termos perdido Mayara Amaral para o machismo e a violência patriarcal. E me sinto responsável por mudar essa história, pois se eu sou violonista e professora e só ensinar e tocar o repertório dos homens, que visão de mundo eu estou ajudando a construir e solidificar?
Se não olharmos a produção de mulheres, que espaço destinamos a elas na sociedade? Como ajudaremos a eliminar a violência contra a mulher se não praticarmos ações de inclusão de gênero e de amor à próxima e ao próximo? Se somos violonistas, isso começa na escolha do repertório!
Deixo aqui, meu agradecimento e amor eterno à querida Mayara Amaral. Sentimos muita saudade de você e nunca deixaremos no esquecimento sua produção e imensa generosidade.
Porto Alegre, 29 de julho de 2019